O Mundo Segundo Noronha

As autobiografias costumam ser encaradas como literatura menor, fruto da nossa cultura de (tantas vezes) apenas aparente humildade, ou melhor, sprezzatura - palavra que, como recorda a propósito um dos meus personagens de A Janela do Cardeal, nunca chegou a ser traduzida para língua portuguesa.

Na verdade, algumas são-no, menores. Outras autobiografias são testemunhos de vida in perpetuam rei memoriam. Uma destas últimas, é a recém-publicada de Durval de Noronha Goyos Júnior, escritor e advogado internacional eminente, que faz o favor de ser meu amigo. Sob o título desta crónica: O Mundo Segundo Noronha (São Paulo, Brasil, 2023).

Cabem neste Portugal Honrado, mais do que propriamente uma recensão, observações de apreço pela obra (pelo gosto que me deu lê-la) e preocupação pela parte que aqui cabe: Portugal em matéria de honra (ou, como já dizia um dos personagens de Camilo Castelo Branco em O Retrato de Ricardina: "Mas a honra, a pátria, a família?... Que coisas são estas, padre? Poderemos jamais restaurá-las?").

No seu estilo contundente, Noronha (nascido em São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, Brasil, no dia 8 de junho de 1951, e feito, entretanto, cidadão do mundo, ao qual deu muitas voltas, por todos os continentes), a meio das mais de 800 páginas do livro, narra um episódio que correu mal:

"O gosto amargo deixado pelo preconceito praticado pela autoridade pública portuguesa nunca saiu de minha boca, o que me fez refletir, sob a perspetiva de brasileiro, a respeito do fato de que, apesar das raízes somente em parte comuns e da natural empatia, Portugal é um país estrangeiro".

Que pena. Duplamente penoso. Que tenha sofrido preconceito. E que sinta o amargo gosto do estrangeiro (entenda-se, mal-recebido ou mal-tratado). Coisas que não são próprias do Portugal Honrado. Um Portugal imenso (sempre, no coração), que nos últimos quinhentos anos se alargou e encolheu, mas continua maioritariamente a pensar nos nossos "primos" brasileiros como "irmãos".

Noronha conta como parte da sua família chegou ao Brasil, vinda de Portugal. Na minha família também há esse trânsito. Meus antepassados, como por exemplo meu bisavô paterno Lourenço Gomes Costa, partiram do seu Portugal natal para o Brasil - então já país independente, mas (digo eu) não estrangeiro... mais não fosse, por esta nossa língua e ethos comum de vai-e-vem.

Hoje em dia, através da digitalização e disponibilização pela Internet dos arquivos de passaportes e listas de embarque, facilmente tomamos conhecimento do trânsito dos nossos familiares entre Portugal e Brasil. Só no Estado de São Paulo encontram-se, ao dia de hoje, mais portugueses adultos do que em todo o Distrito de Évora.

Ainda haveremos de poder mudar O Mundo Segundo Noronha, restaurando a honra de dois primos com irmãos, Brasil e Portugal, familiares independentes mas, vamos lá, estrangeiros não!

Luis Miguel Novais

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